sábado, 5 de novembro de 2016

Isadora e o esplendor da maturidade artística

 Ana Botafogo em "Isadora"
Foto: Aline Nascimento


Acompanho Ana Botafogo desde que a conheci, em 1997. O encontro foi de trabalho, mas perpetuou-se em admiração e amizade. Naquele ano, a primeira-bailarina dançou pela primeira vez em uma usina de aço - mais precisamente a da CSN, em Volta Redonda, onde eu atuava na Comunicação. No evento "100 Milhões de Toneladas", montamos um palco dentro da Usina Presidente Vargas, onde a bailarina mais popular do Brasil encantou centenas de operários, familiares e 500 crianças convidadas. Emoção é pouco pra contar essa história.

Temos nos reencontrado com frequência em Belém, desde que comecei a participar do Fida. Ana é presença obrigatória: além da longa relação de amizade com Clara Pinto, é adorada pelo público onde quer que chegue. Na rua mesmo, já testemunhei cenas comoventes de pessoas que se vêem diante dela e querem ofertar alguma coisa - agradecer, talvez, pela beleza à qual a bailarina os transporta.

O solo "Isadora", de Norma Lilia, foi criado em homenagem a Isadora Duncan, lendária bailarina que inaugurou a liberdade de movimentos, entre o final do século 19 e o início do século 20. E já faz parte do repertório de Ana Botafogo há algum tempo. Eu mesma a vi dançá-lo algumas vezes.

Mas desta vez foi muito diferente. Na noite de sábado, 20 de outubro, no Fida, conheci uma nova Ana Botafogo em cena. O solo era o mesmo, mas estranhamente nada era igual; algo importante se rasgava de dentro dela e inundava o palco, enchia a cena num crescendo que ia a ponto de estourar - e não, não estourava, apenas aumentava nossa ansiedade sincera quanto ao momento em que de fato explodiria. 

Pode-se, talvez, dizer que o estilo e a suavidade eram os mesmos, mas traziam em si um furacão interior irresistível, borbulhante de força, uma torrente poética de sentimento que nos envolvia e nos carregava entre seus pés, nos braços e pernas, nos caminhos vastos, atirados, profundos que o corpo escolhia para manusear a coreografia. Ana Botafogo balouçava entre o imprevisível e o quase impossível, absolutamente senhora de si, desfigurando a alma da personagem com uma estética desabrida que desafiava cada limite, cada tempo, cada emoção a ser debulhada.

Algo de novo e feroz uivava dentro dela, e repercutia debaixo da nossa pele, arrancava qualquer certeza e nos arremessava para o momento de Isadora, para a dor, o desespero, a alegria devastadora, a suprema liberdade que encarnava. Na pele de Ana Botafogo, Isadora dançava no céu, mas entre raios de tempestade, em meio às fagulhas que disparavam pelo palco afora, até o descanso final.


Arrepios me percorriam enquanto tentava organizar as ideias, mas em vão. Não se vive impunemente um momento dessa magnitude, diante da maturidade reveladora de uma artista que aparentemente já fez tudo, já viu tudo, mas que de repente nos desvenda, com uma força insuspeita, imensidões e territórios íntimos jamais imaginados.

Galeria de fotos: Ana Botafogo no solo "Isadora" - Teatro da Paz, Belém - Fotos: Aline Nascimento

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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A alma-mater do Fida

Clara Pinto ao lado de um inspirado retrato a óleo
Foto: Maurette Brandt

Clara Pinto é, seguramente, uma das principais personalidades do Pará, quando o assunto é cultura. Bailarina, coreógrafa, mâitre de ballet, Rainha dos Artistas, Miss Pará, enredo da Escola de Samba Império Pedreirense... e, como se não bastasse, o espírito criador que deu vida ao Festival Internacional de Dança da Amazônia, há exatos 23 anos.

Pode-se dizer que Clara Pinto nasceu com a arte acoplada. Desde as declamações da infância à sua iniciação no ballet, aos 13 anos, eram notórios os seus dons artísticos. Pioneira em tempos preconceituosos, foi a primeira jovem da sociedade a dançar regularmente na televisão. Professora de ballet desde a adolescência, tornou-se a primeira grande empreendedora da dança em Belém - e a primeira a trazer para a cidade o consagrado método da Royal Academy of Dance, de Londres, como diretriz do ensino em suas escolas de dança.

Em 1994, resolveu se encher de coragem e realizou o sonho que alimentava há muito tempo: criar um festival de dança de fôlego no Norte do país. Acostumada que estava a viajar e participar de vários festivais pelo Brasil, como o do Conselho Brasileiro da Dança (CBDD) no Rio, o Festival de Joinville, Bento in Dança (em Bento Gonçalves/RS) e outros, Clara sempre acreditou que os talentos de sua terra mereciam um festival em que pudessem não só mostrar sua arte, mas também se aperfeiçoar com professores do Brasil e do exterior.

Clara Pinto tinha consciência de que o lendário Theatro da Paz, com sua majestade arquitetônica e fantástica acústica, era o palco ideal para realizar o Festival. Arriscou-se pelo sonho, foi e fez - e colheu, em troca, o sucesso absoluto. Ninguém jamais tinha visto coisa igual em Belém. Artistas nacionais e internacionais, lado a lado com os valores da terra, povoaram o palco com sua magia e talento. Com sua fiel equipe de profissionais, garantiu um evento à altura dos mais importantes do país.

Desde então, Clara não parou mais. O Fida foi o caminho para garantir um fluxo regular de artistas e profissionais da dança para a região amazônica, coisa que antes não havia. Além dos espetáculos noturnos, que mesclam artistas convidados com os grupos e bailarinos de Belém, de várias outras cidades do Pará, de outros estados do Norte-Nordeste e até de países vizinhos, como o Suriname, Clara Pinto instituiu uma série de concursos em várias modalidades de dança e também oficinas com profissionais de ponta, para que os bailarinos e alunos de dança pudessem se atualizar todos os anos. 

Criou também apresentações paralelas em diversos espaços da cidade, como shopping centers, o Teatro da Estação Gasômetro e outros. O Palco Livre, que reuniu até 2014 milhares de bailarinos de diversas escolas de dança na Praça da República, era um acontecimento tradicional e esperado na manhã de domingo, o último dia do Fida. E fazia mais sucesso que a feirinha de artesanato que acontece no mesmo local aos domingos. O projeto só foi interrompido por falta de apoio do poder público, mas, se depender dela, pode voltar a acontecer a qualquer momento.

Esse nível de democratização de oportunidades, de abertura de espaços e também de portas - sim, porque o Fida é uma grande vitrine para artistas locais e convidados, frequentado por "olheiros" de vários estados próximos - é uma enorme conquista, fruto dos anos de trabalho, dedicação, empenho, teimosia no bom sentido e de uma crença inabalável no presente e no futuro da dança.

Reconhecida na rua, homenageada por onde passa, Clara Pinto é muito mais que um nome que impõe respeito. É uma verdadeira lenda viva de Belém - que, com sua simplicidade e carisma, compra paçoca e farinha de castanha na carrocinha para comer na rua, senta em qualquer lugar para bater papo e está sempre pronta para conhecer gente.

Ajudar, aprendeu com sua mãe. A casa vivia sempre cheia de pessoas que chegavam em busca de algum auxílio, moral ou material, e acabavam ficando. Fiel à tradição da família, Clara está sempre aberta para receber e apoiar bailarinos, aspirantes a bailarinos, grupos de fora que têm dificuldade para chegar a Belém - enfim, quem quer que seja, dançando ou não.

Essa versatilidade e sua pertinácia em defender a Dança estão nas raízes do Fida, um festival consolidado e consistente, que recebe e multiplica a arte da dança - e que não é apenas uma data no calendário, duas semanas depois do Círio de Nazaré; é, antes, uma parte do milagre salvador da arte, que apaixona quem quer que venha dançar, ensinar, assistir ou comentar. 

O Fida é um legado para Belém e para todo o Norte brasileiro - e reflete, em sua essência, os valores intrínsecos que Clara Pinto vem cultivando ao longo da vida: amor à arte, amor à dança e a crença de que é possível tornar real um grande sonho, se for verdadeiro e para o bem maior de todas as pessoas.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

As "Andanças" de Itaituba até o Fida, em Belém

"Andanças", da Cia. Passos de Luz - Itaituba/PA
Foto: Aline Nascimento

De Itaituba até Belém do Pará são sete horas de lancha até Santarém - e, a partir de lá, outras duas de avião. Para empreender a viagem, precisa ter muita vontade e energia. Precisa dinheiro também, e olha que não é pouco. Precisa esquecer o cansaço e se armar de muita paciência para encarar os quilômetros e quilômetros que parecem não ter fim.

Mesmo assim, 24 bailarinos, acompanhados pela diretora/coreógrafa e quatro assessores, aportaram em Belém no dia 19 de outubro, para participar de mais uma edição do Fida.

Tive a sorte de encontrar a batalhadora Andrea Rodrigues, que fundou e dirige a Cia. Passos de Luz, no momento em que chegava de viagem, na porta da Escola de Danças Clara Pinto. Cansada, sim, mas sempre com seu largo sorriso no rosto, fez muita festa e me arrastou carinhosamente até o ônibus, para conhecer seus bailarinos. Emoção, gente, ver aqueles rostos exaustos, mas cheios de esperança e de expectativa. Em poucas horas, teriam de estar prontos para dançar no palco mais desejado de todos: o do Theatro da Paz, onde acontece o Fida.

A despeito de uma longa trajetória implantando e cultivando escolas e grupos de dança, que começou em Altamira, Andrea Rodrigues está sempre animada como se fosse a primeira vez. O sacrifício parece ajudar - sei lá, quanto mais difícil se afigura a batalha, mais ela investe e se joga, puxando atrás de si os bailarinos e demais integrantes da companhia.

No primeiro dia do festival acontece sempre o Prêmio Valores da Terra, um concurso voltado para os grupos do Pará. Muitas vezes faço parte do júri - e é um prazer ver a evolução dos projetos de dança em terras tão ricas de talento. Este ano, lá estava eu de novo, ao lado de Mariza Estrella e Paula Kalif, para julgar os candidatos.

"Andanças", o segundo na ordem das apresentações, me impressionou de cara pela concisão e rigor. Muitos bailarinos em cena, todos usando calça preta e paletós ou blazers das mais variadas cores, tomaram o palco do Theatro da Paz com um desenho vigoroso e preciso, movimentos econômicos e muito harmônicos, disciplina, desenvoltura. A coreografia surpreendia ao fugir do habitual - daqueles movimentos que a gente, de tanto ver, antecipa sem dificuldade. 

O título "Andanças" sugeria um caminhar que era constante, ritmado, atento e compassado, por vezes interrompido por vivências do caminho transformadas em dança. Braços, arquiteturas, contornos, sutilezas, momentos de força... Tudo isso se mesclava com uma dinâmica inteligente e ao mesmo tempo pungente. Não era difícil imaginar os momentos de sofrimento, de hesitação, de esperança, de alegria, os eventuais conflitos e os momentos de união.

Gente decidida, essa, pensava eu, esperando o que viria a cada novo passo na estrada em que os bailarinos transformaram o palco. Uma estrada feita de música e de fé, de uma energia nova, despretensiosa, mas irretocável no ato de dançar. Eram "an-danças", na verdade, o que se via naqueles bailarinos que conhecem o seu poder, mas em momento algum abusam dele. Muito ao contrário, aliás; existe uma humildade essencial na força deles, na vontade de fazer perfeito, de emocionar, de produzir arte.

Fiquei impregnada daquela coreografia e a eles dei minha nota máxima. Só depois, muito depois, é que soube que aquele era justamente o grupo de Itaituba, o grupo da Cia. Passos de Luz - e, por conseguinte, o grupo de Andrea Rodrigues.

Não venceram o concurso, mas ganharam o respeito e o aplauso da plateia, os suspiros de todos nós - e a certeza de que conhecem perfeitamente o seu lugar no mundo.

A cidade de Itaituba, com seus quase 98 mil habitantes e que fica na microrregião do Sudoeste paraense, pode se orgulhar, e muito, dos passos bem marcados, seguros e refulgentes da Cia. Passos de Luz. 

Galeria de Fotos: Andanças, da Cia. Passos de Luz de Itaituba/PA - Fotos: Aline Nascimento

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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Erick Gutierrez, múltiplo e arrebatador

Erick Gutierrez em "Um corpo, um poema"
Foto: Aline Nascimento

Em 2015, Erick Gutierrez trouxe para o Fida muitas surpresas como intérprete e grande energia para a oficina de sapateado que ministrou. A modalidade, presente em diversas edições anteriores do festival, andava até então um pouco esquecida entre os mais jovens.

Bem, Erick logo disse a que veio, ao apresentar solos numa linguagem surpreendente, poética, que mesclava o sapateado com novas formas de expressão - o que resultou em grande sucesso e empatia com o público.

Em sua primeira noite deste ano, Erick mirou com inteligência o público jovem: a coreografia "Sente a minha vibe", criada em cima de uma trilha ultra-pop, arrebatou de tal modo a plateia que levou quase a uma catarse. - Eu queria mostrar pra toda essa galera que se pode sapatear com as músicas que eles curtem - explicou. 

Foi no alvo e na veia. Tanto que a repórter da TV Liberal, afiliada local da Rede Globo, sentiu o clima da varanda, setor de onde cobria o festival. Pois tratou de correr ao camarim e colocar logo na telinha uma entrevista com a nova sensação do festival.

"Sensação", aliás, foi a palavra que o locutor oficial do Fida, Rui Bastos, usou para descrevê-lo no segundo dia.

O locutor só não sabia que dessa vez a surpresa seria outra. 
E grande.

Até quem estava ligado na "vibe" da véspera se tomou de um silêncio mais que respeitoso diante de "Um corpo, um poema", improviso coreográfico criado por Erick e inspirado no magistral tango Oblivion (Esquecimento), do grande compositor e bandoneonista argentino Astor Piazolla.

Erick usou uma gravação extremamente feliz de Paul Ziegler e, mais uma vez, mergulhou na poética corporal que tão bem domina, apoiado por recursos irretocáveis de luz e sombra, figurino em tons suaves e movimentação cênica de raro lirismo. Lirismo esse, aliás, que integra de forma tão intensa o estilo do artista, a ponto de transportá-lo em muitos momentos para o universo da mímica, naquilo que esta arte tem de melhor e de mais particular.

Pura emoção na qual a técnica ressoa, para embelezar tudo. E o sapateado, presença discreta porém marcante, mais uma vez mostra sua versatilidade em temáticas tão diversas quanto o vibrante pop e a vigorosa obra de Piazolla - o compositor e intérprete que realizou a mais dramática e potente transformação do ritmo tradicional de sua terra ao criar centenas de canções que são verdadeiras obras de arte, como Oblivion, Adiós Noniño, Libertango e tantas outras.

Erick Gutierrez possui recursos muito particulares na dança, no drama, na interpretação. Em conjunto, esses recursos formam um estilo inconfundível, inesperado, que envolve técnica e doçura, vigor e silêncios, às vezes tempestade, outras vezes calmaria.

Nos dois dias seguintes, o artista alternaria novamente os dois solos, com o mesmo sucesso e a mesma força.

Você confere abaixo, na galeria de fotos, os dois momentos de Erick Gutierrez no Fida 2016, clicados pela lente sensível de Aline Nascimento.



Galeria de fotos: Erick Gutierrez nos cliques de Aline Nascimento - FIDA 2016

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sábado, 29 de outubro de 2016

Casa de Abelha e o olhar da delicadeza

Flavia Tapias - Foto: Aline Nascimento

Flavia Tapias foi uma das artistas convidadas do Fida 10, em 2006. Naquele ano eu participava pela terceira vez e já estava profundamente envolvida com o Festival. Lembro de termos trocado algumas palavras - e da beleza da coreografia que executou, do israelense Rami Levy. Suas linhas suaves e a postura alongada, aliada a uma técnica impecável, me impressionaram. Sua mãe, Gisele Tapias, que com a filha organiza há vários anos o festival Dança em Trânsito, no Rio, também era uma das convidadas.

Este ano, Flavia retornou ao Fida com sua simpatia e elegância. Na bagagem e no corpo, um precioso fragmento da coreografia "Casa de Abelha", de sua autoria. Inspirada, segundo mais tarde me contou, no livro-conto "O fio das missangas", do moçambicano Mia Couto.

Um cenário despojado, porém fundamental - algumas cadeiras estrategicamente distribuídas e vários fios grossos que se desenhavam na boca de cena e na lateral direita, a partir do urdimento, contra uma luz pouca - estabelecia o clima inicial.

Da plateia, ignorante de qualquer detalhe, esperei apenas. Esta, aliás, é uma ignorância que me agrada. É confuso e ao mesmo tempo intrigante estar assim, desprotegida, diante de uma obra prestes a se construir. Gosto da liberdade de não saber. O que chega, afinal, sempre traz a sua carga de intensidade e, não raro, surpresa. O fragmento de 14 minutos, para mim uma obra completa, logo se anunciaria.

Com pantalonas em tom pastel e blusa de seda pendendo para o carmim, Flavia Tapias tece delicadezas em cena: olhar perdido, curiosidade, cautela, doçura, braços em absoluta reflexão - sim, braços pensam -, um quê de busca enquanto explora o ambiente com suavidade. Os movimentos,  de irretocável técnica, são nostálgicos e têm sua própria eloquência; discurso de formas quase translúcidas, suaves, que acompanho como numa leitura linha por linha. A história, uma história, ainda não sei bem qual, está entrando em mim liquidamente.

A protagonista percorre com cuidado os móveis da memória, visita algumas cadeiras das mais variadas formas, sobrenada uma delas, muda outras de lugar e segue, como se voltasse no tempo a algum lugar que pode ou não existir. Até encontrar os fios, o momento mais material da viagem.

Neles se enleia e se embala, ora presa, ora dançante, confinada ou ferida, enlaçada ou enredada.  O que passará por sua cabeça? Que lugar que não existe estará naquele longe?

Pega um dos fios pela mão e o solta pelo caminho, como a demarcar paisagens. Agora está de volta às cadeiras e algumas vozes se apresentam, misturadas, difusas, como se fosse uma discussão em outra sala. Um cansaço a percorre e a lança numa cadeira, desalentada. Do meu ponto de vista, até então, a personagem parecia atordoar-se com vozes antigas. Será que a memória lhe prega sustos? Ou nem mesmo a delicadeza lhe permite juntar os fios, organizar o tempo, que pende compassado dos próprios fios que o tecem?

A hora do Angelus parece derramar-se sobre as cadeiras e sobre a mulher sentada, submersa, a tentar organizar seus pontos cardeais. E a Ave-Maria de Gounod, na voz de Renata Tebaldi, espalha sobre o dia as suas bênçãos.

A alma da gente tem vontade de ajoelhar-se.

Flavia Tapias me explicou que a obra original tem 40 minutos e que a Ave-Maria é cantada ao vivo por uma soprano,em cena. Deve ser lindo, com certeza. Mas a história que me contaram aqueles 14 minutos, impelidos por sua dança precisa, discreta, entre pontuações etéreas e marcações bem terrenas, entre o sentir e o ser, foi inigualável para mim. Talvez seja isto mesmo: o poder mágico de uma criação que nos conduz a formar histórias no coração.

Por que Casa de Abelha se sente com o coração. Mérito para criação, criadora e criatura. Flavia Tapias, a bailarina e a coreógrafa, escreve com o corpo, a memória, a técnica, o sentimento, uma poderosa obra conceitual que comove e extasia, entre pequenos sustos, grandes encantos e uma força avassaladora.



Galeria de Fotos: Flavia Tapias em "Casa de Abelha" - Belém, 20 de outubro de 2016 - Por Aline Nascimento


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Belém de novo nos passos da dança: é o FIDA 23!


Com a chegada do FIDA 2016, o espírito da dança toma as ruas da cidade, com apresentações de alto nível

É muito bom chegar a Belém nesses dias que se balançam entre o Círio de Nazaré e o Festival Internacional de Dança da Amazônia, o FIDA. É um estado de êxtase entre a fé e a arte, que a gente sente no simples ato de caminhar pela rua. Na visita à gloriosa iluminação da Doca – com a gigantesca Santa cercada por arabescos de luz – já se pressente um certo ritmo. Em muitas canções da Igreja Católica, a divindade está associada à dança, como expressão do belo e do estado de graça.

Belém respira essas harmonias e nos convida a um bailado de boa-vontade. Até as mangas, altaneiras, oscilam entre as folhas das árvores. É a dança chegando, uma das tantas formas de arte que fazem de Belém um centro de talentos maravilhosos.

Detalhes de última hora

É sempre estimulante chegar à Escola de Danças Clara Pinto e ver as pequenas alunas de ballet clássico às voltas com figurinos, tiaras, adereços e s coreografias. As professoras, atentas e diligentes, repassam os balés, conferem os horários, alertam as mamães para a importância de levarem as crianças bem cedo. Na Secretaria, o vaivém constante dos grupos participantes, que vêm confirmar suas inscrições, movimenta a cena.

No teatro, os técnicos também têm muito que conferir, anotar, lembrar. Cada um tem sua listinha de pendências e verifica cada item com máxima atenção.

Os convidados trocam emails com a organização, para confirmar os horários de chegada. A equipe do receptivo se prepara para atender a todos, a tempo e a hora.

Toda essa mobilização de bastidores passa ao largo do grande público, mas é fundamental para que a magia do FIDA se perpetue a cada ano, com atrações novas, bailarinos ansiosamente esperados que já fazem parte da história e oficinas que permitem aos jovens bailarinos locais e visitantes o contato com a experiência dos grandes centros.

Repertório em oficina é novidade

No programa SEM CENSURA, Clara Pinto fala mais uma vez sobre o FIDA e antecipa novidades, como a primeira Oficina de Repertório Clássico, com o professor Guivalde Almeida, de São Paulo. Guivalde vai montar em quatro dias um trecho do ballet Don Quixote, com os bailarinos inscritos, para ser apresentada no domingo, 23. A montagem terá a participação especial do primeiro-bailarino Cícero Gomes, do Theatro Municipal do Rio, muito querido pelo público paraense.

As tradições do FIDA se renovam sempre, na mesma medida em que se renovam as gerações de bailarinos. Mesmo o que parece igual é sempre muito diferente. Novos talentos, que há pouco tempo eram crianças, surgem agora com grande força. Chegam também novos professores, enquanto outros se despedem.

Homenagem com gosto de saudade

Uma ausência muito sentida será a da Profa. Toshie Kobayashi, uma das maiores autoridades em ballet clássico do Brasil e presença obrigatória no FIDA há vários anos, que faleceu em maio passado.  Caberá a Sérgio Lobato, professor do Bolshoi de Joinville e do Municipal do Rio, a árdua missão de substituí-la, este ano.
 
Toshie Kobayashi torna-se a primeira homenageada in memorian do FIDA, já que no ano passado, depois de muito relutar, resolveu aceitar ser a homenageada de 2016. Clara Pinto, que queria fazer isso há muito tempo, teve de insistir muito para convencê-la. Discreta e fiel ao espírito nipônico, Toshie Kobayashi sempre preferiu os bastidores.

Entra ano, sai ano, Belém recebe o FIDA e o FIDA habita Belém.  O prazer e a esperança se renovam em outubro, mês em que a fé e a dança andam de braços dados. Isto, com certeza, não deve ser por acaso.

Preços acessíveis

Os preços dos ingressos variam entre R$ 60 (plateia, varanda, frisas e camarotes da 1ª ordem), R$ 50 (camarotes da 2ª ordem) e R$ 30 (galeria). Vale lembrar que estudantes, idosos com 60 anos ou mais e pessoas com necessidades especiais (PNE) têm direito à meia-entrada, conforme a legislação vigente.  Para estas pessoas, o preço dos ingressos pode cair, conforme o setor, para R$ 30, R$ 25 e R$ 15, respectivamente.

Durante o FIDA,  o chamado “paraíso” – o último andar do Theatro da Paz – fica reservado para os bailarinos inscritos. – Não vendemos o paraíso para que todos os bailarinos que participam do FIDA, que vêm de vários lugares do país e também do exterior, possam assistir gratuitamente aos espetáculos – orgulha-se Clara Pinto.

O 23º Festival Internacional de Dança da Amazônia acontece de 19 a 23 de outubro, sempre às 20 horas, no Theatro da Paz. Os ingressos estão à venda na bilheteria do Theatro. A programação completa inclui diversas oficinas com professores renomados, concursos de dança em várias modalidades no Teatro Estação Gasômetro e apresentações gratuitas no Boulevard Shopping e no Espaço São José Liberto.



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