sábado, 29 de outubro de 2016

Casa de Abelha e o olhar da delicadeza

Flavia Tapias - Foto: Aline Nascimento

Flavia Tapias foi uma das artistas convidadas do Fida 10, em 2006. Naquele ano eu participava pela terceira vez e já estava profundamente envolvida com o Festival. Lembro de termos trocado algumas palavras - e da beleza da coreografia que executou, do israelense Rami Levy. Suas linhas suaves e a postura alongada, aliada a uma técnica impecável, me impressionaram. Sua mãe, Gisele Tapias, que com a filha organiza há vários anos o festival Dança em Trânsito, no Rio, também era uma das convidadas.

Este ano, Flavia retornou ao Fida com sua simpatia e elegância. Na bagagem e no corpo, um precioso fragmento da coreografia "Casa de Abelha", de sua autoria. Inspirada, segundo mais tarde me contou, no livro-conto "O fio das missangas", do moçambicano Mia Couto.

Um cenário despojado, porém fundamental - algumas cadeiras estrategicamente distribuídas e vários fios grossos que se desenhavam na boca de cena e na lateral direita, a partir do urdimento, contra uma luz pouca - estabelecia o clima inicial.

Da plateia, ignorante de qualquer detalhe, esperei apenas. Esta, aliás, é uma ignorância que me agrada. É confuso e ao mesmo tempo intrigante estar assim, desprotegida, diante de uma obra prestes a se construir. Gosto da liberdade de não saber. O que chega, afinal, sempre traz a sua carga de intensidade e, não raro, surpresa. O fragmento de 14 minutos, para mim uma obra completa, logo se anunciaria.

Com pantalonas em tom pastel e blusa de seda pendendo para o carmim, Flavia Tapias tece delicadezas em cena: olhar perdido, curiosidade, cautela, doçura, braços em absoluta reflexão - sim, braços pensam -, um quê de busca enquanto explora o ambiente com suavidade. Os movimentos,  de irretocável técnica, são nostálgicos e têm sua própria eloquência; discurso de formas quase translúcidas, suaves, que acompanho como numa leitura linha por linha. A história, uma história, ainda não sei bem qual, está entrando em mim liquidamente.

A protagonista percorre com cuidado os móveis da memória, visita algumas cadeiras das mais variadas formas, sobrenada uma delas, muda outras de lugar e segue, como se voltasse no tempo a algum lugar que pode ou não existir. Até encontrar os fios, o momento mais material da viagem.

Neles se enleia e se embala, ora presa, ora dançante, confinada ou ferida, enlaçada ou enredada.  O que passará por sua cabeça? Que lugar que não existe estará naquele longe?

Pega um dos fios pela mão e o solta pelo caminho, como a demarcar paisagens. Agora está de volta às cadeiras e algumas vozes se apresentam, misturadas, difusas, como se fosse uma discussão em outra sala. Um cansaço a percorre e a lança numa cadeira, desalentada. Do meu ponto de vista, até então, a personagem parecia atordoar-se com vozes antigas. Será que a memória lhe prega sustos? Ou nem mesmo a delicadeza lhe permite juntar os fios, organizar o tempo, que pende compassado dos próprios fios que o tecem?

A hora do Angelus parece derramar-se sobre as cadeiras e sobre a mulher sentada, submersa, a tentar organizar seus pontos cardeais. E a Ave-Maria de Gounod, na voz de Renata Tebaldi, espalha sobre o dia as suas bênçãos.

A alma da gente tem vontade de ajoelhar-se.

Flavia Tapias me explicou que a obra original tem 40 minutos e que a Ave-Maria é cantada ao vivo por uma soprano,em cena. Deve ser lindo, com certeza. Mas a história que me contaram aqueles 14 minutos, impelidos por sua dança precisa, discreta, entre pontuações etéreas e marcações bem terrenas, entre o sentir e o ser, foi inigualável para mim. Talvez seja isto mesmo: o poder mágico de uma criação que nos conduz a formar histórias no coração.

Por que Casa de Abelha se sente com o coração. Mérito para criação, criadora e criatura. Flavia Tapias, a bailarina e a coreógrafa, escreve com o corpo, a memória, a técnica, o sentimento, uma poderosa obra conceitual que comove e extasia, entre pequenos sustos, grandes encantos e uma força avassaladora.



Galeria de Fotos: Flavia Tapias em "Casa de Abelha" - Belém, 20 de outubro de 2016 - Por Aline Nascimento


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Belém de novo nos passos da dança: é o FIDA 23!


Com a chegada do FIDA 2016, o espírito da dança toma as ruas da cidade, com apresentações de alto nível

É muito bom chegar a Belém nesses dias que se balançam entre o Círio de Nazaré e o Festival Internacional de Dança da Amazônia, o FIDA. É um estado de êxtase entre a fé e a arte, que a gente sente no simples ato de caminhar pela rua. Na visita à gloriosa iluminação da Doca – com a gigantesca Santa cercada por arabescos de luz – já se pressente um certo ritmo. Em muitas canções da Igreja Católica, a divindade está associada à dança, como expressão do belo e do estado de graça.

Belém respira essas harmonias e nos convida a um bailado de boa-vontade. Até as mangas, altaneiras, oscilam entre as folhas das árvores. É a dança chegando, uma das tantas formas de arte que fazem de Belém um centro de talentos maravilhosos.

Detalhes de última hora

É sempre estimulante chegar à Escola de Danças Clara Pinto e ver as pequenas alunas de ballet clássico às voltas com figurinos, tiaras, adereços e s coreografias. As professoras, atentas e diligentes, repassam os balés, conferem os horários, alertam as mamães para a importância de levarem as crianças bem cedo. Na Secretaria, o vaivém constante dos grupos participantes, que vêm confirmar suas inscrições, movimenta a cena.

No teatro, os técnicos também têm muito que conferir, anotar, lembrar. Cada um tem sua listinha de pendências e verifica cada item com máxima atenção.

Os convidados trocam emails com a organização, para confirmar os horários de chegada. A equipe do receptivo se prepara para atender a todos, a tempo e a hora.

Toda essa mobilização de bastidores passa ao largo do grande público, mas é fundamental para que a magia do FIDA se perpetue a cada ano, com atrações novas, bailarinos ansiosamente esperados que já fazem parte da história e oficinas que permitem aos jovens bailarinos locais e visitantes o contato com a experiência dos grandes centros.

Repertório em oficina é novidade

No programa SEM CENSURA, Clara Pinto fala mais uma vez sobre o FIDA e antecipa novidades, como a primeira Oficina de Repertório Clássico, com o professor Guivalde Almeida, de São Paulo. Guivalde vai montar em quatro dias um trecho do ballet Don Quixote, com os bailarinos inscritos, para ser apresentada no domingo, 23. A montagem terá a participação especial do primeiro-bailarino Cícero Gomes, do Theatro Municipal do Rio, muito querido pelo público paraense.

As tradições do FIDA se renovam sempre, na mesma medida em que se renovam as gerações de bailarinos. Mesmo o que parece igual é sempre muito diferente. Novos talentos, que há pouco tempo eram crianças, surgem agora com grande força. Chegam também novos professores, enquanto outros se despedem.

Homenagem com gosto de saudade

Uma ausência muito sentida será a da Profa. Toshie Kobayashi, uma das maiores autoridades em ballet clássico do Brasil e presença obrigatória no FIDA há vários anos, que faleceu em maio passado.  Caberá a Sérgio Lobato, professor do Bolshoi de Joinville e do Municipal do Rio, a árdua missão de substituí-la, este ano.
 
Toshie Kobayashi torna-se a primeira homenageada in memorian do FIDA, já que no ano passado, depois de muito relutar, resolveu aceitar ser a homenageada de 2016. Clara Pinto, que queria fazer isso há muito tempo, teve de insistir muito para convencê-la. Discreta e fiel ao espírito nipônico, Toshie Kobayashi sempre preferiu os bastidores.

Entra ano, sai ano, Belém recebe o FIDA e o FIDA habita Belém.  O prazer e a esperança se renovam em outubro, mês em que a fé e a dança andam de braços dados. Isto, com certeza, não deve ser por acaso.

Preços acessíveis

Os preços dos ingressos variam entre R$ 60 (plateia, varanda, frisas e camarotes da 1ª ordem), R$ 50 (camarotes da 2ª ordem) e R$ 30 (galeria). Vale lembrar que estudantes, idosos com 60 anos ou mais e pessoas com necessidades especiais (PNE) têm direito à meia-entrada, conforme a legislação vigente.  Para estas pessoas, o preço dos ingressos pode cair, conforme o setor, para R$ 30, R$ 25 e R$ 15, respectivamente.

Durante o FIDA,  o chamado “paraíso” – o último andar do Theatro da Paz – fica reservado para os bailarinos inscritos. – Não vendemos o paraíso para que todos os bailarinos que participam do FIDA, que vêm de vários lugares do país e também do exterior, possam assistir gratuitamente aos espetáculos – orgulha-se Clara Pinto.

O 23º Festival Internacional de Dança da Amazônia acontece de 19 a 23 de outubro, sempre às 20 horas, no Theatro da Paz. Os ingressos estão à venda na bilheteria do Theatro. A programação completa inclui diversas oficinas com professores renomados, concursos de dança em várias modalidades no Teatro Estação Gasômetro e apresentações gratuitas no Boulevard Shopping e no Espaço São José Liberto.



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